Artículos científicos
A participação militar brasileira no Haiti sob as lentes do jornalismo para a paz
The Brazilian military engagement in Haiti through the lens of peace journalism
La participación militar brasileña en Haití a través del lente del periodismo para la paz
Revista Latinoamericana, Estudios de la Paz y el Conflicto
Universidad Nacional Autónoma de Honduras, Honduras
ISSN: 2707-8914
ISSN-e: 2707-8922
Periodicidade: Semestral
vol. 5, núm. 10, 2024
Recepção: 18 Fevereiro 2024
Aprovação: 23 Abril 2024
Cómo citar / citation: Bigatão-Puig, J.; Winand, E. e Cruz, A. (2024). A participação militar brasileira no Haiti sob as lentes do jornalismo para a paz. Estudios de la Paz y el Conflicto, Revista Latinoamericana, Volumen 10, Número 5, 48-62. https://doi.org/10.5377/rlpc.v5i10.17675.
Resumo: Neste artigo, analisamos a participação militar do Brasil na Missão de Estabilização das Nações Unidas no Haiti (MINUSTAH), entre 2004 e 2017, marcada pelo emprego das forças armadas sob um mandato de imposição da paz, enquadrado no Capítulo VII da Carta da ONU. A contribuição deste trabalho está na ferramenta teórico-metodológica proposta para analisar a experiência brasileira no Haiti – o jornalismo para a paz – e nas fontes mobilizadas para tal – o material publicado pela grande imprensa brasileira, especialmente o jornal Folha de S. Paulo. A partir da análise de conteúdo do referido material, argumentamos que a cobertura midiática priorizou fontes oficiais e deu maior destaque aos elementos de contextualização da crise haitiana do que à atuação militar brasileira sob mandato robusto. O papel do Brasil na MINUSTAH foi amplamente abordado e na maioria das vezes estava associado à posição de comando que pretensamente garantiria maior projeção internacional ao país. Os desdobramentos da MINUSTAH no cenário doméstico brasileiro, especialmente no tocante às operações de segurança pública amparadas pelos dispositivos constitucionais de garantia da lei e da ordem, receberam pouca atenção do periódico.
Palavras-chave: MINUSTAH, Brasil, jornalismo para a paz, violência.
Abstract: In this paper, we analyze Brazil's military participation in the United Nations Stabilization Mission in Haiti (MINUSTAH), between 2004 and 2017, under Chapter VII of the UN Charter. The contribution of this work lies in the theoretical-methodological framework that guided the analysis – peace journalism – and in the sources mobilized for this purpose – the newspapers of the Brazilian mainstream press, especially Folha de S. Paulo. Based on the content analysis of the aforementioned material, we argue that media coverage prioritized official sources and gave greater emphasis to contextualization elements of the Haitian crisis than to Brazilian military action under a robust mandate. The country's role in MINUSTAH was widely discussed and most of the time it was associated with the command position that would supposedly guarantee Brazil’s international projection. The impacts of MINUSTAH in the Brazilian domestic scenario, especially considering public security operations, received little attention from the newspaper.
Keywords: MINUSTAH, Brazil, peace journalism, violence.
Resumen: En este artículo, analizamos la participación militar de Brasil en la Misión de Estabilización de las Naciones Unidas en Haití (MINUSTAH), entre 2004 y 2017, marcada por el empleo de fuerzas armadas bajo un mandato de imposición de la paz, respaldado por el Capítulo VII de la Carta de la ONU. La contribución de este trabajo radica en la herramienta teórico-metodologica propuesta para analizar la experiencia brasileña en Haití – el periodismo para la paz – y en las fuentes movilizadas para este fin – las publicaciones de la prensa brasileña, especialmente el diario Folha de S. Paulo. Basado en el análisis de contenido de dicho material, argumentamos que la cobertura mediática priorizó a las fuentes oficiales y enfatizó los elementos de contextualización de la crisis haitiana, em detrimento a la acción militar brasileña bajo un mandato robusto. El rol del país en la MINUSTAH fue ampliamente discutido y la mayor parte de las veces asociado a la posición de mando que supuestamente garantizaría a Brasil una mayor proyección internacional. Los impactos de la MINUSTAH en el escenario interno brasileño, especialmente en lo que respecta a las operaciones de seguridad pública, recibieron poca atención.
Palabras clave: MINUSTAH, Brasil, periodismo para la paz, violencia.
EXTENDED ABSTRACT
In the history of Brazil's contributions to UN peacekeeping missions, the United Nations Stabilization Mission in Haiti (MINUSTAH), which operated between 2004 and 2017, deserves special consideration for its reasons: i) it was the largest Brazilian contingent mobilized for a UN peacekeeping operation; and ii) it represents Brazil's first involvement in a large-scale mission, framed under the aegis of Chapter VII of the UN Charter, in the context in which the institution was concerned with increasing the effectiveness of operations, after a decade of great difficulties. Brazil's engagement in MINUSTAH has provoked discussions and academic productions on different aspects related to the international presence in Haiti, the history of this country, the dynamics of peacekeeping operations, and Brazil's intentions to participate in the mission, both from a foreign policy perspective and from analyses based on the perspective of foreign policy and conflict mediation studies. We propose, however, a qualitative analysis of the journalistic material, in the light of peace journalism. This approach understands that journalistic narratives are not reliable translations of social realities and, moreover, that journalistic practices interferes in the creation and transformation of those realities. From the dialogue between journalism and the EPPs, we question how the journalistic practice legitimizes violence, adopting narratives of a single truth or whether the narratives show the multiple voices, and a plural truth. Analyzing the journalistic content, we found that, due to the fact that the selected newspaper was aimed at the domestic public, the reports, opinion columns and editorials prioritized information regarding Brazil's insertion in MINUSTAH, the possible gains for the country from the expressive contribution to the UN, and the technical qualities of the armed forces mobilized for the mission. Even considering the priority focus on Brazil, the newspaper reports presented little historical contextualization of Brazil's participation in peacekeeping operations. Regarding the specific elements, the newspaper stated that the role of the Brazilian military in Haiti was linked to tasks in three areas: security, democracy, and humanitarian assistance. The news associated Brazil's responsibility with the reorganization of Haiti's security and protection of authorities and facilities, with "stability and democratic reconstruction" and the provision of humanitarian assistance. The analysis of the journalistic material also led us to the conclusion that, when the newspapers reproduced statements by Brazilian political authorities, Brazil's role was described from the point of view of a broader international commitment and a shared leadership with other Latin-American countries, recurrently associated with the notion of solidarity diplomacy and also with the candidacy for a permanent seat in the UNSC. In addition to several other points highlighted in the articles of the selected newspaper, we could note that a more humanistic approach to the Brazilian military was privileged, as opposed to what would be expected from an occupation force. At times when the reports highlighted the most robust aspects of the mandate, they usually associated them with a duty, because as commander of the MINUSTAH Military Force, Brazil had a greater responsibility for the mission’s effectiveness.
1. INTRODUÇÃO
No histórico das contribuições do Brasil às missões de paz da ONU, a Missão de Estabilização das Nações Unidas no Haiti (MINUSTAH), vigente entre 2004 e 2017, merece destaque por pelo menos motivos: i) foi o maior contingente brasileiro mobilizado para uma operação de paz da ONU - além de ser o mais expressivo efetivo deslocado ao exterior desde a Segunda Guerra Mundial –; e ii) representa o primeiro envolvimento do Brasil em uma missão de grande envergadura, enquadrada sob a égide do Capítulo VII da Carta da ONU, no contexto em que a instituição se preocupava com o aumento da efetividade das operações, após uma década de grandes dificuldades.
O engajamento brasileiro na MINUSTAH acalorou discussões e produções acadêmicas a respeito de diferentes aspectos ligados à presença internacional no Haiti, à história deste país, às dinâmicas das operações de paz e às intenções do Brasil em participar da missão, tanto sob o viés da política externa quanto a partir de análises pautadas nos referenciais de mediação de conflitos. Muitos argumentos apontavam os ganhos em termos de cooperação regional e de demonstração da capacidade das forças armadas brasileiras em contribuir substantivamente com a segurança internacional; outros elucidavam a articulação entre as ações de segurança e a promoção do desenvolvimento como um diferencial da atuação do Brasil em operações de paz.
Aqui, analisamos a presença brasileira no Haiti a partir do referencial teórico e metodológico do jornalismo para a paz (peace journalism). Nossa contribuição situa-se no esforço de sistematizar e discutir, a partir desse referencial, o tratamento que a grande imprensa brasileira, especificamente o jornal Folha de S. Paulo, concedeu à temática. A escolha do jornal é representativa de um dos veículos impressos mais antigos no país e que atualmente figura na primeira posição em assinaturas digitais, e entre os três primeiros de maior circulação impressa no Brasil. O acompanhamento das reportagens, editoriais e colunas opinativas publicados foi realizado semanalmente desde 2004, ano de envio das tropas para o Haiti, em virtude do trabalho realizado pela equipe do Informe Brasil, do Observatório Sul-Americano de Defesa e Forças Armadas[1]. A produção dos Informes possibilitou a coleta dos materiais aqui analisados, abarcando diferentes fases da participação do Brasil na MINUSTAH: a decisão do envio das tropas, as atividades dos efetivos, o comando militar dos generais brasileiros, as principais controvérsias na execução do mandato da missão, o terremoto de 2010 e seus impactos na estratégia da ONU para o Haiti, a consolidação do modelo de estabilização e pacificação proposto pela ONU e as etapas de encerramento da MINUSTAH e retirada das tropas, em 2017.
Desta forma, apresentamos, neste artigo, a análise qualitativa do material jornalístico coletado, o qual foi apreciado à luz do jornalismo para a paz. Tal abordagem compreende que as narrativas jornalísticas não são traduções fidedignas das realidades sociais, uma vez que o próprio fazer jornalístico interfere na criação e transformação daquelas. Assim como o referencial teórico do qual é derivado – os Estudos para a Paz, na vertente de Johan Galtung –, que carrega em sua gênese o rompimento com abordagens positivistas fundamentadas no pressuposto de que é possível produzir uma ciência neutra e livre de valores, o jornalismo para a paz assume o caráter normativo e valorativo do trabalho jornalístico. Com isso, abre-se espaço para a produção de análises de conteúdo que permitam identificar as premissas que embasaram a cobertura da grande imprensa em relação a determinado tema.
Ao tomar o jornalismo para a paz como ferramenta teórico-metodológica, privilegiamos a chamada categoria de aproximação, voltada ao exame da presença ou ausência de elementos contextuais no material jornalístico publicado sobre a participação do Brasil na MINUSTAH; da presença ou ausência de informações sobre os efeitos/consequências do envio das tropas; e da presença ou ausência de diversidade de fontes. Com isso, questionamos se a cobertura permitiu aos leitores uma ampla abordagem das diferentes realidades presentes na participação militar do Brasil no Haiti, especialmente no que se refere aos elementos de contextualização, às consequências do engajamento na missão, e à diversidade de fontes.
O trabalho divide-se em três seções, além desta introdução e das conclusões. Na primeira, apresentamos um panorama geral do envolvimento do Brasil no Haiti, com destaque para os elementos que transformaram a MINUSTAH em um ponto de inflexão nas contribuições militares do país à ONU, especialmente considerando as consequências da adesão a uma missão que recebeu do Conselho de Segurança (CSNU) um mandato robusto. Neste item, foram analisadas a literatura específica sobre as operações de paz e alguns documentos que veicularam o discurso oficial das autoridades brasileiras sobre o envolvimento militar no Haiti, tal como comunicados oficiais dos ministérios da Defesa e das Relações Exteriores, além de relatórios das forças armadas brasileiras e de think tanks, como o Instituto Igarapé.
Em seguida, descrevemos o referencial teórico-metodológico do jornalismo para a paz, explorando sua base normativa e vinculação com os Estudos para a Paz. Neste item, atentamo-nos para as orientações concretas que este referencial nos oferece para a apreciação crítica de materiais jornalísticos, as quais foram discutidas e adaptadas para a confecção da análise exposta na última seção do trabalho.
Verificamos, ao final da análise, que a cobertura do jornal Folha de S. Paulo priorizou as fontes oficiais e deu maior destaque aos elementos de contextualização da crise haitiana, descrita de forma multidimensional, do que à contextualização da participação do Brasil em operações de paz. Constatamos que o papel do país na MINUSTAH foi amplamente abordado nas diversas reportagens, editoriais e colunas opinativas, na maioria das vezes associado à posição de comando que pretensamente garantiria ao Brasil maior projeção internacional. Os efeitos e consequências do engajamento militar brasileiro no Haiti, de 2004 a 2017, foi o aspecto analisado em que encontramos menor incidência no jornal, geralmente restrito aos custos financeiros da missão, aos ganhos para as forças armadas e, em menor medida, à internalização da experiência na MINUSTAH no domínio da segurança pública brasileira.
2. O BRASIL NA MINUSTAH: A SOLIDARIEDADE TRANSMUTADA NO EMPREGO DA VIOLÊNCIA
O envolvimento do Brasil na Missão de Estabilização das Nações Unidas no Haiti (MINUSTAH) representou o maior esforço do país em seu histórico de contribuições às operações de paz da ONU. Dos cerca de 54 mil peacekeepers brasileiros engajados nas missões da ONU entre 1947 e 2018, aproximadamente 37 mil foram desdobrados no âmbito da MINUSTAH (Haman e Mir, 2019). Ou seja, quase 70% das contribuições brasileiras às operações da ONU concentraram-se na missão autorizada pela Resolução 1542 do CSNU, de 30 de abril de 2004, e encerrada em outubro de 2017.[2]
Outro aspecto que torna a MINUSTAH um ponto de inflexão na trajetória dos peacekeepers brasileiros foi o fato do país ter assumido o comando do Componente Militar durante todo período de extensão da missão –11 generais brasileiros foram nomeados Force Commanders– feito até então nunca registrado nas operações da ONU, uma vez havia um sistema de rodízio de países a ocupar a posição de comandante militar das forças de paz, designado pelo Secretário-Geral da Organização (Harig, 2019).
Além dos dois fatores elencados, é de fundamental importância destacar o perfil do mandato da MINUSTAH e sua peculiaridade perante outras operações das quais o Brasil participou. A missão no Haiti foi autorizada no contexto em que os principais atores do sistema onusiano discutiam novos formatos de intervenções em virtude das dificuldades enfrentadas em experiências anteriores. Era evidente a preocupação, expressa no Relatório Brahimi (ONU, A/55/305, 2000), em evitar a repetição de catástrofes humanitárias em regiões que estavam sob mandato do CSNU, como havia ocorrido especialmente nos casos da Bósnia, de Ruanda e da Somália, em meados da década de 1990.
Harig (2019) observou que ao aprovar a MINUSTAH, pela primeira vez o CSNU incluiu na denominação de uma operação de paz o termo “estabilização”. O autor destacou que, embora este fato tenha sido pouco debatido, ele possuía um significado bem definido no arcabouço da OTAN, referindo-se ao emprego de instrumentos militares para estabilizar um país e neutralizar grupos armados. Karlslud (2015) avaliou que o termo “estabilização” foi adicionado ao vocabulário das intervenções multilaterais a partir do estabelecimento da SFOR –Força de Estabilização da OTAN na Bósnia Herzegovina em 1995– e desde então remete a esforços militares para estabilizar uma área violenta como precondição para o início de ações de fortalecimento das instituições de um país/região.
Muggah (2013) apud Gomes (2014) ressaltou que a “estabilização” também remete, num contexto mais específico, às intervenções lideradas pelos EUA no Afeganistão e no Iraque no pós-11 de setembro de 2001, e que, somadas às atividades da OTAN na ex-Iugoslávia e aos debates sobre a doutrina das operações de paz da ONU, abarca um conjunto de processos também denominados de “pacificação”, “consolidação’”, “peace enforcement” e “contra-insurgência”. Harig (2019, p. 4, tradução nossa) destacou que “embora a ONU não tenha uma interpretação claramente definida sobre as missões de estabilização, os capacetes azuis muitas vezes estão virtualmente ‘em guerra’ nessas operações”.
Assim, a MINUSTAH insere-se neste novo panorama, caracterizado no arcabouço da ONU a partir dos conceitos de “operações robustas” e “mandatos robustos”, que seriam institucionalizados, quatro anos após a implementação da missão no Haiti, no relatório fundador da doutrina das operações de paz da organização, a Capstone Doctrine (ONU, 2008). Tal movimento formalizou a flexibilização de um princípio basilar das missões de paz da ONU – o uso da força restrito à autodefesa – para então consentir uma postura mais incisiva dos peacekeepers no nível tático, orientada à proteção de civis no marco dos objetivos estabelecidos pelo CSNU.
A incongruência que se estabeleceu a partir do momento em que o Brasil decidiu assumir um papel de destaque na MINUSTAH refere-se à tradição do país até então privilegiar em suas contribuições às missões da ONU um perfil de atuação menos robusto. Fontoura (2005) divide o histórico da participação do Brasil em três fases –1957-67; 1989-2004; e a partir de 2004 – que de forma geral correspondem ao perfil da maioria das missões da ONU aprovadas em cada período: na primeira fase, o país contribuiu com missões tradicionais, caracterizadas pelo perfil de monitoramento de cessar-fogo, a exemplo da participação na Primeira Força de Emergência das Nações Unidas (UNEF I), destacada no contexto da crise de Suez (1956).
Na segunda fase, o país enviou militares e policiais para missões que incluíram tarefas de assistência humanitária, observação da situação de direitos humanos, negociação de acordos de paz e acompanhamento de processos de reconciliação nacional. Destaca-se, neste período, o engajamento brasileiro na UNAVEM III (1995-1997) – Missão de Verificação das Nações Unidas em Angola III – que representa a terceira maior contribuição às missões da ONU em termos de pessoal mobilizado, ficando atrás apenas da MINUSTAH e da UNEF I (Haman e Mir, 2019).
O início da terceira fase é marcado pelo envolvimento na MINUSTAH, sob a égide do Capítulo VII. No contexto do golpe que tirou Jean-Bertrand Aristide do poder em 2004, a Resolução 1542 do CSNU (ONU, 2004) classificou a situação haitiana enquanto “ameaça à paz e segurança regionais” e atribuiu à MINUSTAH os objetivos de 1) Garantir um ambiente seguro e estável; 2) Apoiar ao processo político e constitucional; 3) Observar o respeito aos direitos humanos.
Assim, a crise no Haiti e o mandato da MINUSTAH exigiram do governo brasileiro à época – presidente Lula, Celso Amorim (Relações Exteriores), José Viegas (Defesa) – um esforço retórico para justificar o comprometimento do país com uma missão de tal envergadura, o qual foi construído em torno do imperativo moral de solidariedade.
Seitenfus (2006) traduziu a retórica brasileira a partir das noções de “ingerência solidária” e “diplomacia solidária”, fundamentadas no suposto desinteresse material ou estratégico por parte do(s) país(es) interventor(es) –latino-americanos, em geral, e especificamente o Brasil. Um dever de consciência seria, portanto, o diferencial do engajamento dos países do Sul global em relação aos tradicionais contribuintes das tropas onusianas.
Abdenur e Call (2017) discutiram o que ficou conhecido como “Brazilian way”, ou seja, uma abordagem brasileira própria, baseada nos princípios de solidariedade e não-interferência, que abarcaria uma postura menos militarizada para lidar com as questões de segurança internacional. Nesta leitura, o Brasil aportaria à MINUSTAH um diferencial também em virtude da suposta sensibilidade cultural das tropas, do compartilhamento de passados coloniais e raízes culturais, e da vocação mediadora e não-coercitiva.
No entanto, conforme a MINUSTAH evoluía, flagrava-se o desenvolvimento de um novo perfil do Brasil nas missões da ONU, aderente às exigências do novo espectro de operações robustas. Tal perfil se revelava também em relatos e publicações dos próprios membros das forças armadas brasileiras em posições de liderança.
De acordo com o general José Ricardo Vendramin (2015, p. 17), diretor do Centro Conjunto de Operações de Paz do Brasil (COOPAB) entre 2014 e 2016, havia uma dicotomia entre a preparação dos militares brasileiros para missões de Capítulo VI, como em Angola nos anos 1990, e as “exigências operacionais em função do mandato e das tarefas esperadas pelo contingente militar na MINUSTAH”.
Vendramin descreveu que nos primeiros anos da MINUSTAH, especialmente entre 2004 e 2009, o Brasil desenvolveu gradativamente uma doutrina de pacificação urbana para responder ao ambiente com o qual se deparou no Haiti, sendo possível distinguir três fases que culminaram na consolidação deste novo modelo de atuação sob o Capítulo VII: a primeira, entre 2004 e 2005, quando o treinamento do contingente brasileiro enfatizou “módulos de tiros, combate urbano e liderança”, de forma a preparar os soldados para “operações urbanas complexas, patrulhamento robusto e intensivo, domínio territorial, ações de busca, cerco e vasculhamento”; a segunda fase, entre 2006 e 2007, se pautou em um “modelo de pacificação urbana baseado em pontos fortes, expansão do perímetro de segurança e patrulhamento intensivo para a negação de território a grupos armados”; e a terceira fase, entre 2008 e 2009, quando “as operações militares de desarticulação de grupos armados urbanos começaram a migrar para ações tipo polícia” e exigiram treinamento especializado em “detenção temporária de indivíduos, mandatos de prisão, policiamento ostensivo, controle de distúrbios, entre outros”. (Vendramin, 2015, p. 17-18).
O coronel Marcos Venicio Mendonça, que participou das missões da ONU em Moçambique e na Costa do Marfim, publicou, na época em que era chefe da Divisão de Missão de Paz do Comando de Operações Terrestres (COTER), um artigo no qual classificava a participação do Brasil na MINUSTAH como “um caso de sucesso”. Entre as razões elencadas estava o emprego de dois destacamentos especiais: o DOPAZ (Destacamento de Operações de Paz), que teve como finalidade multiplicar seu “poder de combate”; e o DOP (Destacamento de Operações Psicológicas), voltado para organizar uma rede de informantes e para conquistar apoio da população, construindo uma imagem da MINUSTAH mais próxima de uma “força de ajuda humanitária” do que de uma “força de ocupação” (Mendonça, 2017, p. 62). Embora o referido texto não apresente detalhes sobre tais destacamentos, a jornalista Tahiane Stochero, que esteve no Haiti em 2007 e em 2010, descreveu que o DOPAZ era uma tropa especializada de cerca de 20 integrantes, que geralmente realizava operações sem identificação de nomes nos uniformes, e estava preparada para “as piores situações de guerra” (Stochero, 2017).
Hoff e Blanco (2021, p. 64) argumentaram que, na MINUSTAH pacificar foi sinônimo de impor a ordem por meio da violência. Desse modo, as forças da ONU realizaram operações na periferia de Porto Príncipe com vistas a reprimir grupos criminosos e “inevitavelmente acabava também atingindo a população dessas localidades”, que são densamente povoadas.
Outro elemento importante para a compreensão da presença militar brasileira no Haiti refere-se ao transbordamento das atividades de pacificação para âmbitos diversos daqueles delimitados por mandatos da ONU, inclusive domesticamente, considerando o quadro de operações de garantia da lei e da ordem (GLO) previstas na Constituição Federal brasileira. O coronel Mendonça (2017, p. 62) destacou as semelhanças dos problemas de segurança pública enfrentados por Brasil e Haiti, ressaltando “a presença de grupos armados exercendo poder sobre uma determinada área ou região, onde a forte violência de gangues armadas produz fartura de exposição de corpos feridos e cadáveres”. Para ele, o militar brasileiro não se surpreendeu com os problemas de segurança encontrados no Haiti, em especial na capital Porto Príncipe, uma vez que “o nosso soldado também era acostumado à impunidade e a resolver os problemas onde o poder público era ineficaz ou inexistente.” (Mendonça, 2017, p. 62).
Harig (2019) descreveu a incorporação da experiência brasileira na MINUSTAH às ações de pacificação no Rio de Janeiro como uma espécie de “peacekeeping at home” e argumentou que o elemento fundamental deste movimento foi a adesão do Brasil a uma missão de paz caracterizada pelo novo modelo de operação robusta. Segundo ele, o papel desempenhado pelo país na MINUSTAH, narrado ao público brasileiro como um grande sucesso de um novo modelo de pacificação, legitimou o transbordamento das experiências dos militares no Haiti para o contexto interno brasileiro, inclusive utilizando expressões semelhantes, como “Força de Pacificação”[3]. (Harig, 2019, p. 7).
Verificamos, portanto, que o comprometimento com a missão no Haiti, além de representar o maior esforço logístico e operacional do Brasil em operações de paz da ONU, exigiria uma mudança no modus operandi das forças armadas brasileiras, dado que até então o país priorizava participar de operações com mandatos delineados por princípios tradicionais, especialmente no tocante ao uso da força restrito à autodefesa.
3. O JORNALISMO PARA A PAZ COMO FERRAMENTA TEÓRICO-METODOLÓGICA[4]
Lynch e McGoldrick (2005, p. 5, tradução nossa) conceituam que o jornalismo para a paz “é quando os editores e jornalistas fazem escolhas – do que noticiar e de como noticiar – que criam oportunidades amplas para a sociedade considerar e valorizar respostas não-violentas aos conflitos”.
No cerne da proposta do jornalismo para a paz está o referencial teórico dos Estudos para a Paz (EPP), vertente inaugurada pelo norueguês Johan Galtung entre as décadas de 1950 e 1960, que promoveu uma guinada em relação aos estudos de segurança internacional, até então pautados na agenda prioritária dos Estudos Estratégicos. Destacamos dois elementos desta guinada: o primeiro, está na definição de que objeto de estudos primário dos EPP é a “paz” e não o conflito e a guerra; e o segundo, encontra-se na ruptura com o caráter positivista das investigações que o precederam, as quais consideravam ser possível produzir conhecimento cientificamente neutro, livre de valores e derivado da observação de uma realidade externa objetiva. Desta ruptura surgiram os Estudos para a Paz, os quais se distinguem dos estudos da paz ou sobre a paz por seu caráter socialmente produtivo e normativo, “afirmando seu compromisso com os valores, especialmente o da paz” (Pureza e Cravo, 2005, p. 8).
Wiberg (2005, p. 27) definiu a vertente dos EPP originária de Galtung como aquela que congrega “valores, teoria e dados”. A expressão do trinômio é encontrada na teoria estrutural da violência proposta por Galtung, na qual ele distingue a violência direta, relativa ao ato intencional de agressão; a violência estrutural, uma forma indireta de violência que decorre da estrutura social, como a repressão, em sua forma política, e a exploração, em sua expressão econômica e que também é definida pelo autor pelo conceito de injustiça social; e a violência cultural, também indireta, emaranhada no sistema de normas e comportamentos que legitima socialmente as outras duas (Galtung, 1990).
Em sentido amplo, a paz corresponde à conjunção da eliminação das violências direta, estrutural e cultural. Dentro desta perspectiva, Galtung propôs, em artigo publicado com Mari Holmboe Ruge no Journal of Peace Research em 1965, uma discussão sobre a influência dos jornalistas na produção do conteúdo das notícias, questionando os aspectos estruturais –organizacionais e ideológicos– que permeiam o fazer jornalístico (Galtung; Ruge, 1965).
Embora o início desta discussão remonte a meados dos anos 1960, Cabral e Salhani (2017) observaram que o jornalismo para a paz se propagou no âmbito acadêmico e profissional principalmente nos anos 1990, sendo os jornalistas Annabel McGoldrick e Jake Lynch importantes pesquisadores da área, responsáveis por impulsionar as contribuições iniciais de Galtung e Ruge.
A partir do diálogo do jornalismo com os EPP, é possível problematizar em que medida a prática jornalística legitima a violência, tanto em seu aspecto direto –a partir de uma lógica sensacionalista de naturalização da violência– quanto em relação à violência cultural, que pode ser verificada na forma como os conflitos são descritos, nas leituras unidimensionais dos cenários de guerra e no privilégio concedido às chamadas fontes oficiais.
Galtung (1996) chamou a atenção para a responsabilidade dos jornalistas na elaboração e difusão das notícias, de modo que aqueles comprometidos com o jornalismo para a paz, ao reportar os cenários de guerra e conflito, preocupar-se-iam com a inserção de múltiplas abordagens, distanciando-se da cobertura jornalística tradicional e dando voz àqueles que não costumam possuí-la. Neste sentido, noticiar conflitos torna-se uma oportunidade de revelar a ‘verdade completa’ – ou as diferentes verdades– em oposição à ‘verdade única’, que é a marca das chamadas notícias de propaganda (aquelas produzidas para tornar o conteúdo mais atrativo ao leitor, e por consequência, mais comercializável), tornando o fazer jornalístico uma atividade mais questionadora (Lynch e Galtung, 2010).
Na avaliação de Nicolás Gavilán (2013), Galtung não atribuiu à grande imprensa a responsabilidade por criar violência, mas sim por transformá-la em fonte de remuneração e contribuir para a polarização de uma realidade muito mais complexa do que aquela reportada, geralmente, a partir de uma lógica binária de vencedores e perdedores.
Assim, a proposta do jornalismo para a paz
“é dar voz e tornar visíveis determinados aspectos das realidades sociais que são escamoteados por uma lógica de naturalização da violência. É optar pela redefinição das relações dos jornalistas com suas fontes e os contextos em que elas estão inseridas e, desta forma, abrir caminho para o equilíbrio, a justiça e a ética no trabalho jornalístico” (Cabral e Salhani, 2017, s/p.).
Além do aspecto normativo do jornalismo para a paz, nos interessa, particularmente neste trabalho, o enfoque metodológico oferecido por esta abordagem. Conforme Nicolás Gavilán (2013, p. 71, tradução nossa), “o modelo do jornalismo para a paz apresenta não apenas uma abordagem normativa, como também propõe orientações concretas para analisar e elaborar notícias”, sendo Lynch e McGoldrick (2005) pioneiros na elaboração deste modelo de análise que tem sido empregado em pesquisas que avaliam a cobertura da imprensa em diferentes conflitos, problematizando se esta estaria orientada à promoção da paz ou à exaltação da violência. Essencialmente, o modelo auxilia na identificação da orientação de determinada notícia, ou conjunto de notícias, a partir do jornalismo para a paz (peace journalism) ou do jornalismo de guerra (war journalism).
Voltando ao modelo de análise de reportagens proposto por Lynch e McGoldrick (2005), os autores diferenciam sete categorias analíticas, dividida em dois grupos: no primeiro, que se preocupa com o conteúdo da notícia, estão as “categorias de aproximação”, que se referem i) à contextualização do conflito, ii) às informações sobre os efeitos dos conflitos, iii) à orientação às pessoas comuns, e iv) às vozes presentes (diversidade das fontes); no segundo grupo, que se orienta à narrativa da notícia, estão as “categorias de linguagem”: v) a utilização de linguagem vitimizadora, vi) o tom aterrador (ou sensacionalista) do relato; e vii) a emotividade do recurso narrativo.
A partir da sistematização dessas informações, é possível trabalha-las de diferentes formas para analisar a cobertura dos jornais sobre determinado conflito, ou mesmo a atitude individual de determinado jornalista ao reportar um conflito. Lee e Maslog (2005), por exemplo, analisaram a cobertura de 10 jornais de grande circulação em cinco países asiáticos envolvidos em quatro conflitos regionais, a partir da identificação sugerida por Galtung (1998) de 13 indicadores de jornalismo para a paz e 13 indicadores de jornalismo de guerra, os quais foram divididos nas mesmas categorias sugeridas por Lynch e McGoldrick (2005): categorias de aproximação e categorias de linguagem. Nicolás Gavilán (2013), por sua vez, aplicou o modelo de análise do jornalismo para a paz para estudar as abordagens de onze profissionais correspondentes de jornais espanhóis, de diferentes grupos de comunicação, para o conflito entre israelenses e palestinos no período 2007-2008 e identificou que dois deles adotam em suas notícias uma maior tendência ao jornalismo para a paz.
Com base no levantamento que realizamos, a pesquisa que mais se aproxima do trabalho aqui proposto foi publicada por Biazoto (2011) no Conflict & communication online, com o sugestivo título “Peace journalism where there is no war: Conflict-sensitive reporting on urban violence and public security in Brazil and its potential role in conflict transformation”. Trata-se de uma abordagem do jornalismo para a paz aplicada ao caso do Rio de Janeiro, onde não existe uma guerra em curso, mas um quadro de violência urbana permeado por altos índices de homicídio.
Na pesquisa cujos resultados apresentamos neste artigo, mobilizamos o referencial metodológico do jornalismo para a paz visando avaliar a cobertura da grande imprensa brasileira, em particular a Folha de S. Paulo, sobre a participação do país na MINUSTAH. Realizamos uma adaptação deste referencial utilizado predominantemente na análise da cobertura sobre conflitos/guerras, de forma a aplicá-lo a uma situação diferente: envio de tropas para uma missão de paz.
Seguindo a indicação de Nicolás Gavilán (2013), desenvolvemos um código de análise dos materiais publicados pelo jornal (quadro 1), com enfoque nas “categorias de aproximação” propostas por Lynch e McGoldrick (2005), ou seja, priorizando a análise de conteúdo. O quadro analítico nos permitiu refletir e questionar a cobertura da Folha sobre as diferentes realidades presentes na participação militar do Brasil no Haiti, especialmente no que se refere aos elementos de contextualização, às consequências do engajamento na missão, e à diversidade de fontes.
Após o estabelecimento do código de análise, passamos para a fase de coleta do material jornalístico. Neste ponto, reconhecemos, conforme destacaram Waisbich e Pomeroy (2014), que o Haiti representou um laboratório de engajamento multisetorial para o Brasil, mobilizando não apenas as forças armadas do país, como também o terceiro setor, especialmente organizações não-governamentais, além de agências governamentais. No entanto, optamos por restringir a análise ao setor militar em virtude dos aspectos de inflexão discutidos no início deste artigo. Desta forma, tomamos como critério de inclusão na base analítica as unidades textuais da Folha de S. Paulo que versavam sobre a participação militar do Brasil na MINUSTAH entre 2004 e 2017, sendo os outros aspectos da presença do país no Haiti excluídos. Em relação às unidades textuais presentes nos jornais, selecionamos reportagens, colunas opinativas e editoriais. Não foram inseridas na base analisada: entrevistas e cartas de leitores.
Para a triagem do material, realizamos um levantamento nos resumos dos Informes do Observatório de Defesa e Forças Armadas, uma vez que o projeto se dedica ao seguimento de imprensa dos temas de defesa e forças armadas em jornais da grande mídia. Assim, pesquisamos os Informes elaborados entre 2004 e 2017 para identificar a presença de reportagens, colunas opinativas e editoriais da Folha de S. Paulo sobre a temática em tela e, em seguida, localizamos as unidades textuais no acervo digital do jornal[5]. Esta etapa nos dispensou do uso da plataforma de busca do jornal, limitada a assinantes, e garantiu a identificação do material dentro do recorte temático e temporal exposto no parágrafo anterior.
Importante destacar que o Informe é elaborado com base na edição impressa do jornal, a qual é possível acessar digitalmente. Ao todo, foram identificadas 307 unidades textuais sendo a maior frequência encontrada nos anos de 2010 (72 peças), 2006 (43 peças) e 2004 (36 peças). Entendemos que a maior incidência de material nos referidos anos se relaciona, respectivamente, com o devastador terremoto que atingiu o Haiti em 12 de janeiro de 2010; com a morte do general brasileiro Urano Teixeira da Matta Bacellar, comandante das tropas, e o ano de eleições presidenciais no Brasil (2006); e com o ano de envio do primeiro contingente ao Haiti (2004), acontecimentos em que a pauta analisada recebeu maior atenção da imprensa escrita.
Quanto ao procedimento de análise do material selecionado, seguimos as etapas: inserção de cada unidade textual em planilha excel; leitura individual da unidade textual à luz das perguntas que constam no código de análise descrito no quadro 1; anotações sobre o conteúdo de cada unidade textual; sistematização dos resultados. Ressaltamos que não empregamos qualquer software ou meio automatizado de análise de dados qualitativos, sendo que os resultados apresentados na próxima seção exprimem a interpretação das autoras a respeito dos significados atribuídos à participação do Brasil na MINUSTAH pelo jornal Folha de S. Paulo. Tais significados foram desvendados a partir do código de análise construído para tal finalidade .
4. A PARTICIPAÇÃO DO BRASIL NA MINUSTAH SOB A LENTE DO JORNALISMO PARA A PAZ
A partir da análise do material jornalístico, verificamos, quanto ao primeiro e segundo questionamentos do código de análise – contextualização – que por se tratar de um jornal brasileiro direcionado ao público doméstico, as reportagens, colunas opinativas e editoriais priorizaram as informações referentes à inserção do Brasil na MINUSTAH, aos possíveis ganhos ao país advindos da expressiva contribuição à ONU, e às qualidades técnicas das forças armadas mobilizadas para a missão.
Mesmo considerando o enfoque prioritário no Brasil, constatamos, no que se refere à primeira pergunta do código de análise, que as reportagens apresentaram poucas contextualizações históricas sobre a participação do Brasil em operações de paz. Em geral, o jornal pontuou tais informações principais: i) não era a primeira participação do Brasil em missões da ONU; ii) o Brasil já havia participado de 25 missões internacionais de manutenção da paz; e iii) concomitante à decisão do envio de soldados para o Haiti, havia 50 capacetes azuis brasileiros na missão da ONU no Timor Leste. Posteriormente, quando o governo brasileiro iniciou formalmente os trâmites para o envio de cerca de 1.100 capacetes azuis para o Haiti, a Folha contextualizou que este seria o maior grupamento militar enviado ao exterior desde a Segunda Guerra Mundial.
Quanto ao segundo questionamento do código de análise, que poderíamos entender como “o retrato Haiti” descrito ao público brasileiro, observamos tendência do jornal em não invocar o termo “guerra civil” quando reportava a presença do Brasil na ilha caribenha. As poucas vezes que encontramos tal termo, ele vinha atrelado à expressão “à beira de uma guerra civil”. As palavras e expressões mais recorrentemente utilizadas foram “turbulência”; “clima de insegurança”, “situação de instabilidade”, “rebelião”. Especificamente no que se refere à crise haitiana que desencadeou as discussões sobre o envio das tropas brasileiras em 2004, o jornal a descreveu como uma “crise política”/ “revolta de grupos contrários ao presidente”/ “rebelião de grupos de oposição” que resultaram na “queda de Aristide”/ “fuga de Aristide” e, por consequência, em uma situação de “anarquia”/ “vazio de poder”/ “desordem”.
O jornal avaliava que a “criminalidade civil” e a atuação de ex-militares haitianos que reivindicavam reincorporação às forças armadas e pagamentos atrasados impunham grandes desafios à atuação das tropas brasileiras. As reportagens salientaram, além dos quadros de instabilidade política e de criminalidade, as “precárias condições” sociais e econômicas do Haiti, a ausência de infraestrutura, as “péssimas condições sanitárias”, a pobreza e o desemprego. Exploraram a grande incidência de catástrofes naturais, com destaque para a tempestade tropical Jeanne, que atingiu o país entre 18 e 19 de setembro de 2004; e o terremoto de 12 de janeiro de 2010, que causou um cenário de destruição desolador.
Ainda sobre o “retrato Haiti”, a Folha contextualizou que o país já havia recebido outras quatro missões da ONU desde 1996, e que a MINUSTAH seria uma “prova de fogo”. A coluna opinativa da jornalista Eliane Cantanhêde, publicada na Folha em 05 de setembro de 2004, descrevia uma situação de relativa tranquilidade na capital do país, Porto Príncipe, área de responsabilidade do batalhão brasileiro, porém enfatizava que o Haiti estava “destruído” e entregue a grupos armados (Cantanhêde, 2004).
As reportagens apontavam que as tropas brasileiras enfrentariam “riscos militares baixos”, endossando a avaliação do ministro da Defesa na época, José Viegas, de que “as situações de hostilidade são improváveis”. No entanto, com o passar do tempo, no “retrato Haiti” começaram a aparecer sugestões de um cenário de maior instabilidade, descrito pelo jornal nos termos “ondas de violência” e “atuação de grupos armados”, indicando ao leitor um aumento do risco para as tropas brasileiras que estavam no país.
Neste ponto, chegamos ao terceiro questionamento do código de análise – o papel dos militares brasileiros no Haiti – e a forma como ele foi descrito ao público brasileiro. Verificamos que o jornal nem sempre esclarecia aos leitores que o Brasil comandava apenas a Força Militar da MINUSTAH, composta por peacekeepersde diversos países, e que esta era uma vertente importante, mas não única na missão, que sempre teve no comando geral um representante especial do Secretário-Geral da ONU. Muitas vezes, as reportagens descreviam que o Brasil era comandante da força de paz da ONU no Haiti, passando uma ideia equivocada do papel do país na missão.
Quanto aos elementos específicos, a Folha expressava que o papel dos militares brasileiros no Haiti estava atrelado a tarefas em três áreas: segurança, democracia e assistência humanitária. As reportagens associavam a responsabilidade brasileira à reorganização da segurança do Haiti e proteção de autoridades e instalações, à “estabilidade e reconstrução democrática” e à prestação de assistência humanitária.
A análise do material jornalístico também nos levou à constatação de que, quando o jornal reproduziu declarações de autoridades políticas brasileiras, o papel do Brasil era descrito a partir de um compromisso internacional mais amplo e de uma liderança compartilhada com outros países da região, recorrentemente associados à noção de diplomacia solidária e também à candidatura a uma vaga permanente no CSNU. Já nas declarações de autoridades miliares brasileiras, como os comandantes da Força Militar da MINUSTAH, da Brigada Haiti, ou o comandante do Exército, o jornal destacava o desarmamento da população e de grupos ilegais como principal responsabilidade dos militares brasileiros no Haiti, geralmente combinando este assunto com a noção de que o contingente buscava ser percebido pela população haitiana mais como uma força humanitária do que uma força militar/ de ocupação.
Os materiais levaram ao público brasileiro um aspecto que descrevemos na segunda seção deste texto, referente à mudança no treinamento das tropas como necessidade de adequação aos desafios da segurança pública haitiana; porém, as reportagens geralmente justificavam que tal modificação vinha acompanhada da intensificação das ações de assistência humanitária prestadas pelos peacekeepers brasileiros. Assim, observavam que em determinados momentos, os brasileiros tinham que “pegar em armas”, mas pontuavam que as ações militares por si só não seriam suficientes para estabilizar o Haiti, colocando o combate à pobreza e a reconstrução econômica como fundamentais ao cumprimento do mandato da MINUSTAH. Neste aspecto, observamos o reforço do “Brazilian way”.
Quando nos voltamos ao quarto questionamento do código de análise, no qual buscamos referências aos efeitos e consequências da participação militar do Brasil no Haiti para o cenário doméstico brasileiro, avaliamos que este foi o item com menor incidência na cobertura do jornal. As informações reportadas com maior frequência estavam associadas ao “alto custo da missão”, indicando uma ponderação de custo/benefício que levaria os leitores a questionarem a validade do empenho financeiro em uma missão no exterior, ao passo que o Brasil carecia de investimentos em diversas áreas. Outro aspecto destacado pela Folha eram os efeitos, reportados como positivos, para a melhoria das forças armadas, em termos de treinamento, experiências e organização. Verificamos que tanto os custos financeiros –avaliado pelo jornal como tendencialmente negativos– como o incremento da profissionalização das forças armadas –reportado como tendencialmente positivo– vinham sempre acompanhados de informações que indicavam um fortalecimento da projeção do Brasil no exterior e, consequentemente, da candidatura do país a uma vaga permanente do CSNU.
Finalmente, no último ponto do código de análise dos materiais jornalísticos, verificamos um predomínio das fontes oficiais, algo já esperado quando tratamos de veículos da grande imprensa. O jornal deu voz às declarações de autoridades políticas e militares brasileiras, especialmente aquelas que ocuparam, no período em que a MINUSTAH esteve em vigência, a presidência da República, os ministérios da Defesa e das Relações Exteriores, os comandos da Força Militar da MINUSTAH, além de informar os dados técnicos das operações militares a partir dos relatórios dos serviços de comunicação social das forças armadas brasileiras. Em algumas edições, principalmente nos momentos de retorno dos batalhões que haviam servido ao Haiti (rodízio das tropas), a Folha publicou declarações de militares recém egressos ao país, abordando a experiência dos soldados em uma missão internacional. Por outro lado, a cobertura raramente trazia informações de fontes alternativas, como a avaliação da população haitiana sobre a presença dos militares brasileiros no Haiti.
5. CONCLUSÕES
Neste artigo, analisamos de que forma a grande imprensa reportou ao público brasileiro a participação das forças armadas do país na missão no Haiti, a partir da abordagem teórico-metodológica do jornalismo para a paz. Elaboramos, com base em Galtung (1998), Lynch e McGoldrick (2005) e Nicolás Gavilán (2013), um código de análise dos materiais publicados pelo jornal Folha de S. Paulo a respeito da temática, priorizando as categorias de aproximação, ou seja, a análise de conteúdo.
Verificamos que a cobertura do jornal priorizou as fontes oficiais e deu maior destaque aos elementos de contextualização da crise haitiana, descrita de forma multidimensional, do que à contextualização das participações do Brasil em operações de paz. Notamos que as reportagens publicadas nos anos iniciais da missão indicaram uma certa anuência ao discurso da diplomacia solidária e à noção da não indiferença. Porém, com o passar do tempo, o jornal reportou o recrudescimento do emprego da força pelo contingente brasileiro na MINUSTAH, entendendo que as ondas de violência nas regiões mais conturbadas do Haiti justificavam tal mudança.
Observamos que a grande imprensa, aqui representada pela Folha de S. Paulo, reportou recorrentemente o papel do Brasil no Haiti nas áreas de segurança, fortalecimento da democracia e provisão de assistência humanitária, na maioria das vezes enaltecendo uma abordagem mais humanista do militar brasileiro, em contraposição ao que se esperaria de uma força de ocupação. Nos momentos em que as reportagens evidenciaram os aspectos mais robustos do mandato, geralmente os associavam a um dever, pois como comandante da Força Militar da MINUSTAH, o Brasil tinha uma responsabilidade maior pelo bom andamento da missão.
Por fim, os efeitos e consequências do engajamento militar brasileiro no Haiti foi o aspecto analisado em que encontramos menor incidência no jornal, geralmente restrito aos custos financeiros da missão. Ao nosso ver, tal fato restringiu o alcance da percepção social quanto aos papéis que realmente deveriam ser cumpridos pela missão.
6. REFERÊNCIAS
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Notas
Autor notes
Informação adicional
Cómo
citar / citation: Bigatão-Puig,
J.; Winand, E. e Cruz, A. (2024). A participação militar brasileira no Haiti
sob as lentes do jornalismo para a paz. Estudios de la Paz y el Conflicto,
Revista Latinoamericana, Volumen 10, Número 5, 48-62. https://doi.org/10.5377/rlpc.v5i10.17675.