in Revista Latinoamericana, Estudios de la Paz y el Conflicto
O êxodo urbano e o contexto da pandemia de covid-19: refletindo transições nos modos de vida contemporâneos e seu impacto biorregional
Resumo
O êxodo urbano é um fenômeno que envolve a saída dos grandes centros urbanos em direção a cidades menores ou à zona rural. Possui diferentes causas, geralmente relacionadas à insatisfação com a cidade grande. Ganhou destaque com a chegada da pandemia de covid-19, tendo sido favorecido com a expansão das novas tecnologias e do trabalho remoto. Nesta pesquisa, o fenômeno é estudado no âmbito teórico e, em seguida, é refletido a partir da análise dos documentários Onde mora a essência da vida (Davi Moura e Clara Moura, 2021, 27m28s) e O êxodo humano (APOEMA, 2021), que abordam o êxodo urbano a partir da pandemia e anterior a ela. Observa-se que, após a migração, são variados os desafios que surgem, incluindo adaptação ao novo ritmo de vida e conflitos de interesse. Analisar o fenômeno constitui uma oportunidade de refletir os modos de vida contemporâneos e a busca por estratégias mais justas com o meio ambiente, mais generosas com a rotina humana, e socialmente mais saudáveis. Esse objetivo traz à tona a visão biorregionalista, que se fortalecerá com um ordenamento territorial bem executado.
Main Text
EXTENDED ABSTRACT
This paper focuses on analyzing the reasons for and consequences of the urban exodus, especially in light of the COVID-19 pandemic. Although the rural exodus is a historical trend, the pandemic has brought to the fore demetropolization. It already occurred previously, but has received current contours, which include new stimuli and possibilities. This movement was initially led by people who owned a second home, so they started living temporarily in villages, towns - including coastal towns - or the countryside, constituting a type of transhumance. Over time, it came to involve leaving the big city and moving to a new environment.
Regarding methodology, to approach the phenomenon of people fleeing metropolises during the COVID-19 pandemic, we first consulted literature related to certain adjacent themes: urban exodus, neo-ruralism, territorial/spatial planning and bioregionalism. Subsequently, we analyzed the specific characteristics of the phenomenon in the delimited context, so we looked for content from reports, scientific articles and publications by organizations. We then proceeded to analyze two Brazilian documentaries that deal with the urban exodus driven by COVID-19: Where the essence of life lives (Onde mora a essência da vida, Davi Moura and Clara Moura, 2021, 27m28s), The human exodus (O êxodo humano, APOEMA, 2021). Various dimensions are considered, from personal motivations to social, economic and environmental implications.
As a theoretical reference and situational framework, the wear and tear of metropolises on populations is discussed, which is a trigger for the search for new living spaces. The context analyzed considers the unsustainability of metropolises, and the prospects of bioregionalism and territorial planning in promoting healthier development for new migrants and the environment. The characteristics of adaptation are varied, considering the change in pace of life and new needs.
Amid new technologies, life in large urban conglomerates is not always an essential condition for work and income, and in addition, in times of pandemic, it has lost its place of overvaluation as a provider of quality of life and personal fulfillment. Neo-ruralism is approached as a phenomenon independent of the COVID-19 pandemic, until, in a second moment, it is linked to the pandemic period.
Finally, discussions on territorial issues are added. Perspectives on bioregionalism are introduced, as a possible relationship between human beings and nature and local society, and territorial planning, as a way of incorporating them.
The concept of a bioregion encompasses the entirety of its environment, including its climatic, hydrological, faunal, floral, and topographical characteristics, while also includes the local society, its culture, and historical context. By considering both the physical and human geography of an area, a bioregion considers its unique features, human and environmental needs, with geographical space emerging as a crucial factor that shapes productive forces and social dynamics. The philosophy underpinning the bioregion concept aims to instill within communities a profound understanding and appreciation of their surroundings, integrating individuals into local knowledge and social structures, all with the overarching goal of promoting ecosystem sustainability and fostering cooperation among inhabitants. In light of the unsustainable nature of large urban centers, it becomes imperative to embrace regenerative strategies that can cultivate economically, ecologically, and socially viable living conditions within thriving bioregions. Achieving this objective necessitates dedicated territorial planning firmly rooted in the principles of the bioregion.
Territorial planning involves the management of human interactions within the environment, employing various methods, approaches, and collaborative efforts across public and private sectors to influence the distribution and behaviors of people within a given territory. It comprehensively addresses social, economic, and environmental aspects through practices and policies.
This paper delves into the constructive role of spatial planning in conjunction with the concept of bioregion. Both concepts embrace the distinct characteristics of each environment and the potential impact of human influence. They inspire reflection and action to shape the models of spaces under development and management. Their shared goal is to curtail adverse environmental impacts while enhancing the quality of life, fostering a deeper connection with nature, and strengthening local human communities, encompassing politics, economics, cultural recognition and human values such as respect and solidarity.
The analysis of the documentaries complements the theoretical framework, reinforcing the concepts studied, pointing out examples of personal experiences and raising new discussions. The migration of people from metropolises to smaller areas is shown in the films from a perspective that considers improvements for the migrant, but also considers the local environment. As such, the concerns represented in the documentaries are in line with the discussions provided by the literature. Although the concepts studied were not always named in the films, it is possible to notice the similarity of the discussions and objectives.
In summary, the trend of urban exodus is once again thrusting environmental consciousness into the limelight, reigniting pertinent debates. It offers a moment for introspection regarding contemporary lifestyles and the quest for strategies that prioritize environmental sustainability, enhance human well-being, and foster societal health. This underscores the urgency of investments and public initiatives geared toward a job market in full transformation, in which the production chain must harmonize with both environmental preservation and community well-being. As a result, this discourse highlights the importance of a bioregionalist perspective, one that stands to gain strength through meticulous territorial planning.
1. INTRODUÇÃO
Este trabalho objetiva analisar os porquês e as consequências do êxodo urbano. Considera-se as experiências da pandemia de covid-19, a insustentabilidade das metrópoles, e as possibilidades do biorregionalismo e do ordenamento territorial na promoção de um desenvolvimento que preconiza uma relação saudável entre os novos deslocamentos humanos e o ambiente.
Como referencial teórico e marco situacional, é discutido o desgaste das metrópoles sobre as populações, sendo este um fator desencadeador da busca por novos espaços de vida. São também agregadas discussões sobre problemáticas territoriais e o conceito biorregionalismo. O êxodo urbano é abordado como um fenômeno independente da pandemia por covid-19, até que, em um momento seguinte, é vinculado ao período pandêmico. Introduzimos perspectivas do biorregionalismo, como uma possibilidade de relação do ser humano com a natureza e com a sociedade local, como um caminho para sua incorporação, redesenhando novos usos territoriais. Aborda-se, portanto, diversos impactos proporcionados pela fuga das metrópoles, bem como o posicionamento dos novos moradores frente à biorregião.
Em seguida, procedemos à análise de dois documentários, Onde mora a essência da vida (Davi Moura e Clara Moura, 2021, 27m28s), O êxodo humano (APOEMA, 2021). A atenção é voltada sobretudo aos depoimentos presentes nessas duas obras, observando as características da transitividade migratória que são levantadas, bem como as reflexões referentes aos diferentes modos de vida e sua relação com o ambiente.
Esta pesquisa visa a enriquecer as discussões sobre o êxodo urbano e explorar as mudanças nos modos de vida catalisadas pela pandemia. Combina esses dois temas aliados à perspectiva biorregional, o que resulta em uma análise única, preenchendo uma lacuna na literatura existente. É pertinente examinar esses assuntos sob a ótica ambiental, uma vez que o ambiente desempenha um papel fundamental nas decisões de migração e pode ser significativamente impactado com novos fluxos migratórios. Os documentários analisados ilustram os temas discutidos e trazem à tona novas questões, especificamente a partir da perspectiva das pessoas que optaram por deixar as grandes cidades para trás.
2. REFERENCIAL TEÓRICO
2.1 O desgaste das metrópoles
O típico desenho de uma casa no campo, com árvore, montanha e sol, feito por crianças de diferentes realidades, simboliza elementos nos quais se identificam e se reconhecem (APOEMA, 2021). À medida que crescemos, abandonamos essa visão lúdica da vida ao nos moldarmos às exigências da lógica capitalista, que prioriza a produtividade e o lucro e identifica as metrópoles como centro onde tudo acontece (APOEMA, 2021). Entretanto, junto à circulação do capital financeiro e informacional nas grandes cidades, surgem uma série de problemas que levam à exaustão do atual modo de vida urbano: violência, medo, artificialização, trânsito estressante, desemprego e elevado custo de vida etc. (Pretto, 2021).
O fenômeno contemporâneo de emigração das cidades para o campo visibiliza certos conceitos, como o neorruralismo, que descreve a migração para áreas rurais com diferentes motivações e contextos (Méndez Sastoque, 2013). Historicamente, houve uma ênfase maior no movimento oposto, do campo para a cidade, resultando, no início do século XXI, na concentração da maior parte da população mundial em centros urbanos (Augusto, 2022, 2m11s). O atual movimento de pessoas das áreas urbanas para as rurais – o neorruralismo – tem suas origens variadas; iniciou-se na França como uma política governamental para descentralizar atividades industriais, enquanto no Brasil foi impulsionado pela insatisfação com as condições de vida precárias e o crescimento descontrolado das metrópoles (Augusto, 2022, 2m11s).
Fuga das metrópoles é um conceito complementar ao de neorruralismo, incluindo a compreensão de que o êxodo urbano também pode ocorrer em direção a cidades menores ou áreas litorâneas, de modo definitivo, mas também temporário. A busca por uma melhor qualidade de vida tem levado muitas pessoas a valorizarem esses diferentes ambientes e seus contextos socioculturais (Pretto, 2021). Estudos sugerem que essa preferência pode estar ligada a uma necessidade ancestral de conexão com a natureza, algo que nosso cérebro, moldado ao longo de milhares de anos, ainda anseia, especialmente em um ambiente cada vez mais urbano e tecnológico (Gomes, 2022).
A saída da cidade não é isenta de desafios. Requer investimento financeiro, flexibilidade laboral, possibilidade de renda e disposição de se adaptar a uma nova forma de vida, o que nem sempre acontece (Pretto, 2021). Estando relacionada a casas de segunda residência, a crescente busca por moradia afastada do perímetro urbano chegou ao Brasil como um fenômeno particularmente presente entre as classes média e alta (APOEMA, 2021). Ao destacar a viabilidade do trabalho remoto, a pandemia facilitou o êxodo urbano para muitas pessoas que passaram a ter mais liberdade para escolher onde viver (APOEMA, 2021).
Embora o êxodo urbano prometa uma vida mais equilibrada e satisfatória, não é uma solução instantânea para todas as necessidades individuais. A adaptação se dá em diferentes fases dentre as quais, sobretudo no início, pode ser comum a vontade de transferir a estrutura metropolitana para a nova vida. Adaptação cultural, choques de expectativas e a necessidade de reconstruir uma vida social são desafios comumente enfrentados (APOEMA, 2021).
O desejo em torno ao êxodo urbano reflete a busca da sociedade por um estilo de vida em harmonia com as necessidades humanas básicas. É um lembrete de que, apesar dos avanços tecnológicos e urbanização, a conexão com a natureza continua sendo uma parte vital da existência.
2.2 Perspectivas territoriais
As expectativas dos migrantes quanto ao local de moradia são moldadas por experiências pessoais e imagens idealizadas, transmitidas por histórias familiares ou promovidas por entidades como o setor turístico e imobiliário (Pretto, 2021). A relação emocional com o local em que se vive é essencial para a conexão e a satisfação pessoal, convertendo-se em um artifício comercial. A oportunidade de negócios produz nichos de mercado e transforma territórios em “locais de consumo do ambiente, do modo de vida das pessoas, da paisagem” (Pretto, 2021, p.60-61). Isso nem sempre se traduz em melhorias ambientais ou desenvolvimento social local.
A chegada de novos habitantes aos interiores frequentemente resulta em aglomerados de segundas residências próximos a comércios e vilas distritais. A dinâmica local é modificada, trazendo impactos positivos (como a valorização de produtos locais e oportunidades de trabalho) e desafios, como aumento do ruído, festas e tráfego, que afetam a qualidade de vida e a sensação de segurança (Pretto, 2021). Além disso, surgem demandas adicionais em questões ambientais, econômicas, sanitárias, legais e habitacionais (Pretto, 2021).
No contexto capitalista das zonas rurais brasileiras, a acumulação de propriedades privadas se manifesta como um fator lucrativo, contribuindo para a concentração de patrimônio e recursos financeiros (Lencioni, 2015). O crescimento do agronegócio, com seu impacto na balança comercial, expansão da área cultivada, desenvolvimento tecnológico e competitividade internacional, reforça essa dinâmica econômica (Borsatto et al., 2006).
O território brasileiro, predominantemente rural, abriga uma grande parcela de municípios de pequeno porte, classificados como “Rural Adjacente” ou “Rural Remoto”, onde a lógica das atividades produtivas muitas vezes contribui para a perpetuação de desigualdades sociais (Coutinho et al., 2019). Apesar de ser vista como refúgio natural, a zona rural frequentemente enfrenta condições de vida subumanas, como trabalho infantil, trabalho escravo contemporâneo, acidentes de trabalho, insalubridade, falta de renda, violência de gênero e violentos conflitos agrários e ambientais (Medeiros, 2017).
O modelo dominante nas discussões ecológicas muitas vezes privilegia a centralização política e a exploração ilimitada dos recursos naturais em nome do crescimento econômico, ignorando a diversidade cultural e os diferentes ecossistemas do planeta (Boff, 2015). Contudo, enquanto algumas pessoas buscam nos ambientes rurais uma solução para problemas urbanos como pobreza, déficit habitacional e violência, essas áreas são frequentemente idealizadas como soluções fáceis, negligenciando questões fundamentais como a reforma agrária (Arrais, 2021).
A análise da prosperidade estritamente econômica é insuficiente; é imperativo desenvolver abordagens integradas que considerem os impactos sociais e ecológicos das mudanças no meio rural (Borsatto et al., 2006). É essencial compreender as múltiplas realidades interdependentes que compõem o meio agrário brasileiro e reconhecer as diversas consequências das ações tomadas (Morin, 2001).
Inspirado em práticas milenares como o Bem Viver, o biorregionalismo surge como uma abordagem mais harmoniosa com a natureza e potencialmente transformadora da atual crise (Boff, 2015). Originado nos EUA na década de 1970, o biorregionalismo valoriza o conhecimento e o respeito pelas características regionais, buscando desenvolver o potencial local através do reconhecimento de sua história e tradições (Borsatto et al., 2006).
A biorregião se circunscreve numa área que abarca rios e montanhas, incluindo vegetação, geografia do terreno, fauna, flora e cultura local (Boff, 2015). Valorizando as especificidades geográficas e culturais de cada região, o biorregionalismo promove o uso racional dos recursos locais, incentivando a cooperação comunitária e a sustentabilidade econômica, social e ambiental (Boff, 2015; Borsatto et al., 2006).
No âmbito da biorregião, a sustentabilidade não é apenas retórica; é um processo dinâmico que utiliza de forma racional as capacidades oferecidas pelos ecossistemas locais, promovendo maior igualdade e participação comunitária nos projetos locais (Boff, 2015). Embora a comunidade local seja a unidade básica da biorregião, ela não está isolada das influências externas, como as mudanças climáticas globais, o que evidencia a importância da abordagem coletiva para enfrentar os desafios atuais (Boff, 2015).
O biorregionalismo facilita a circulação de mercadorias localmente, promove o surgimento de cooperativas comunitárias e valoriza as características e potenciais regionais, integrando as necessidades humanas e ambientais (Boff, 2015; Borsatto et al., 2006). Substitui a lógica do “viver melhor” pela ética da suficiência, buscando o bem-estar comunitário e a harmonia com a Mãe Terra (Boff, 2015).
Considerando os desafios dos grandes centros urbanos, é necessário um planejamento territorial que promova o desenvolvimento sustentável nas áreas rurais e urbanas, focando nas necessidades sociais, econômicas e ecológicas locais (Vianna, 2022, 1h43m14s). Este planejamento deve envolver práticas coordenadas entre setores público e privado para influenciar a distribuição espacial das atividades humanas, por meio de um ordenamento territorial que, comprometido com a biorregião, considere aspectos como moradia, infraestrutura, economia, modos de vida, ambiente e uso do solo (Van Assche et al., 2013).
Os impactos da nova movimentação migratória também se aplicam às áreas de saída e levam à reflexão sobre os modelos de cidade que estão sendo geridos. As cidades não devem ser pensadas somente como espaços de sobrevivência, mas como locais que proporcionem qualidade de vida e contato com a natureza (Pretto, 2021). Modelos urbanísticos que promovem ecocidades contribuem para a redução do impacto ambiental negativo e o estímulo ao bem-estar humano através do contato com áreas verdes (Gomes, 2022).
2.3 Fuga das metrópoles na pandemia
O coronavírus encontrou um Brasil com limitados investimentos em saúde, incluindo o teto de gastos públicos, aprovado em 2016, constituindo “Um urbano fragmentado, segregado e desigual, consequência da dominância de um modo de produção que constrói ilhas de produtos imobiliários geradores de lucro e renda em meio a um mar de ocupações informais” (Carvalho et al., 2022, p.416). Em meio à alta transmissibilidade do coronavírus, à globalização, à maior urbanização já encontrada por um patógeno, e à malha de pontes aéreas que conecta as cidades do mundo, a covid-19 avançou de maneira significativamente rápida, sendo possível identificar uma concentração de casos relacionada ao elevado número de trabalhadores que realizavam longos deslocamentos diários, em transportes coletivos lotados (Carvalho et al., 2022). Com a evolução da emergência pública, houve uma concentração de casos graves nos bairros onde reside a classe trabalhadora dos serviços essenciais ou informais, com dificuldades para o trabalho remoto (Carvalho et al., 2022; Medeiros, 2021).
A pandemia provocou múltiplas emoções, incluindo o despertar de sentimentos relacionados aos locais da vida cotidiana, o que leva muitas pessoas a pensarem sobre o lugar em que desejam viver (Pretto, 2021). Soma-se a isso uma maior preocupação ligada à saúde, tema que passa pela relação com o meio natural (Gomes, 2022).
Em contato com a natureza, as perspectivas mudam, o que leva as pessoas a verem e sentirem de modo diferente do que estão habituadas na vida metropolitana (APOEMA, 2021). Ela potencializa a contemplação e o contentamento, além de possibilitar um resgate do pertencimento e potencializar o encontro com nossa essência (APOEMA, 2021). Tais sentimentos, foram intensificados com a chegada da pandemia.
A pandemia provocou confinamentos cultivados entre telas, paredes, carência de espaço natural e liberdade, intensificando uma realidade já vivida nas cidades. Evidenciou o desgaste e a exaustão causados pela vida urbana atual, “sendo possível interpretar a relação das pessoas com o lugar onde vivem por meio de suas experiências, da influência da história pessoal e do desejo” (Pretto, 2021, p.62). A vontade de deixar a metrópole não se localiza na covid-19 ou na ineficiência política, abrangendo um desejo maior: evitar o ambiente insalubre, perigoso e inoperante que ela se tornou (Arrais, 2021).
A pandemia causou inúmeras transformações na organização social. Em meio ao recolhimento doméstico, a cidade grande deixou de ser a primeira opção para muitas pessoas, que passaram a encontrar mais espaço, tranquilidade e/ou economia em outros ambientes. Esse movimento foi protagonizado inicialmente por pessoas que possuíam uma segunda casa, de modo que passaram a viver, temporariamente, em povoados ou cidades menores, em praias ou campos, constituindo um tipo de transumância. Com o tempo, ganhou mais força o abandono do endereço da cidade grande e a mudança para um novo ambiente.
A busca por outro ambiente durante a pandemia também se relaciona à reunificação familiar, envolvendo, por um lado, um vínculo afetivo (companhia, apoio emocional, cuidados sanitários), por outro, uma motivação econômica (sobretudo por jovens que deixaram o aluguel para viver com os pais). Há ainda aqueles que não necessariamente se mudaram para mais perto de suas famílias, contudo passaram a encontrar ambientes mais econômicos, como ao trocarem o aluguel da capital pelo do interior. Assim, a fuga das cidades deixou de ser um fenômeno com “data de validade” e concentrado nas pessoas que possuíam uma segunda casa, passando a constituir-se como um deslocamento mais durável ou mesmo permanente. Para todos os efeitos:
Em termos quantitativos, o Censo Demográfico de 2022, em comparação com o anterior (2010), revelou um padrão de deslocamento populacional de grandes cidades brasileiras para cidades menores do interior e do litoral, ou novos polos industriais afastados das regiões metropolitanas. Dentre as cidades com queda de população, destaca-se Salvador com uma redução de 9,63%. Outras capitais também perderam habitantes: Fortaleza teve uma redução de quase 1%, Vitória -1,5%, Rio de Janeiro -1,7%, Belo Horizonte registrou queda de 2,5%, Recife -3,2%, Porto Alegre -5,4%, Belém e Natal -6,5% (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], 2022). Embora esses dados apontem para a diminuição da população em importantes cidades, por conta do período de doze anos com relação ao censo anterior, não é possível precisar quanto desse deslocamento foi motivado pela pandemia de covid-19.
Para uma melhor compreensão dos números referentes à saída da população da cidade grande motivada pela emergência sanitária, certas informações podem ser observadas por meio do mercado imobiliário. Nos primeiros cinco meses de 2020, o Grupo ZAP registrou um aumento expressivo na busca por imóveis no interior de São Paulo, com crescimento de 340% na procura por cidades a mais de 100 km da capital, enquanto os preços em áreas urbanas mais centrais experimentaram quedas devido à baixa demanda. Durante o mesmo período, a busca por casas em condomínios, bairros ou chácaras na plataforma cresceu de 0,5% para 2,2%, enquanto a procura por apartamentos na cidade de São Paulo caiu 1,7% (Santana, 2020). O Imovelweb também notou um aumento significativo nas buscas por imóveis no interior, com um crescimento de 28% entre março e setembro de 2020, chegando a 60% em junho (Sutto, 2020). Frederico Marcondes César, vice-presidente do Interior do Sindicato da Habitação de São Paulo (Secovi-SP), destaca que essa tendência já vinha crescendo nos últimos anos, porém se relacionava a pessoas migrando para cidades até 100 km da capital, motivadas por melhorias na infraestrutura viária, crescimento industrial e atratividade de custo e qualidade de vida nessas cidades menores (Sutto, 2020).
A busca por um novo endereço foi facilitada pelas novas tecnologias, notadamente a expansão do alcance da Internet, permitindo que muitas pessoas transferissem e adaptassem suas rotinas de estudo (Ensino Remoto Emergencial – ERE) e trabalho, incorporando o trabalho remoto, por vezes envolvendo novos modelos de negócio, possibilitando novas perspectivas. É fato que um bom número de pessoas já trabalhava remotamente, seja de maneira autônoma ou em corporações, assim como a Educação a Distância (EaD) já possibilitava o ensino-aprendizagem de maneira remota, contudo a pandemia ampliou as necessidades (e em alguns casos, o interesse por novos cursos) e demandou uma adaptação rápida, por parte das organizações e das pessoas. A partir das novas possibilidades propiciadas pelo ambiente virtual, o retorno à modalidade presencial passou a ser, inclusive, indesejado para um certo número de pessoas.
3. METODOLOGIA
Para a aproximação do fenômeno do êxodo urbano durante a pandemia por covid-19, recorremos, inicialmente, à consulta de literatura sobre os temas relacionados (êxodo urbano, neorruralismo, ordenamento territorial e biorregionalismo), incluindo referências com as quais já trabalhávamos. Posteriormente, analisamos as características específicas do fenômeno no contexto delimitado, de modo que buscamos conteúdos de reportagens, artigos científicos e publicações de organizações.
Em seguida, procedemos à análise de dois documentários brasileiros que abordam o êxodo urbano impulsionado pela covid-19: Onde mora a essência da vida (Davi Moura e Clara Moura, 2021, 27m28s), O êxodo humano (APOEMA, 2021). Mantivemos o foco no enredo dos filmes e em sua relação com o contexto sócio-histórico da produção, propiciando a identificação das representações do movimento migratório neles retratado.
Para facilitar a interpretação dos dados dos depoimentos, destacamos suas principais informações em duas tabelas, tendo sido esta uma ferramenta na organização dos dados, favorecendo visualização e síntese. Procuramos observar diferenças e similaridades, bem como padrões ou tendências. Categorizamos os dados de acordo com as seguintes abordagens:
- Características de produção: análise comparativa dos enredos;
- Decisão: motivação para o êxodo urbano; facilitadores e obstáculos para a execução;
- Características da adaptação pessoal: desafios e ganhos; senso de pertencimento;
- Impactos biorregionais: alterações ambientais; influência sobre a cultura local; conflitos de interesses entre habitantes locais e novos residentes;
- Peculiaridades da pandemia: influências da pandemia de covid-19 (no texto, esta categoria foi diluída entre as outras).
O uso desta metodologia ajudou em uma melhor compreensão dos filmes, em suas abordagens e representações, favorecendo uma análise fundamentada.
4. RESULTADOS E DISCUSSÃO
4.1 Características das produções
As duas produções, Onde mora a essência da vida (Davi Moura e Clara Moura, 2021, 27m28s) e O êxodo humano (APOEMA, 2021) foram realizadas no contexto da emergência sanitária e trazem discussões em comum, sendo compostas pela participação de pessoas que decidiram sair do ambiente urbano agitado para espaços mais tranquilos e seguros, seja a zona rural ou as cidades litorâneas.
Com 27 minutos, Onde... foi produzido para o canal Desfrutando a Vida, no Youtube. À música instrumental, acompanhada de imagens do campo e de cidade de médio porte, se une a voz do narrador. Como parte da abertura, é abordada uma definição de êxodo rural – a saída de fluxos humanos do campo para as cidades em busca de melhores condições de vida – como uma forma de introduzir o fenômeno inverso, o êxodo urbano. São inseridos fragmentos de depoimentos de alguns participantes, ainda não identificados, como uma prévia do filme. Relatam certas problemáticas das cidades. Seguem-se os créditos iniciais, dando continuidade à música e à exibição de imagens, entendidas como novos destinos.
O enredo é constituído em torno aos depoimentos. Das 12 pessoas entrevistadas, 11 apresentaram o testemunho pessoal e uma ocupou o papel de especialista. Há entre elas um total de quatro casais. Junto à fala de cada um dos participantes, é apresentada uma legenda identificativa com seu nome e sua ocupação. Um dos participantes é originário da Bélgica e seu depoimento foi em inglês, acompanhado de legenda.
A respeito do local de moradia: não é mencionado onde o especialista vive; um dos casais vive na cidade; um dos participantes está em um período de transição entre a cidade e o campo, passando mais tempo no campo; 8 pessoas já vivem no campo, tendo se instalado em diferentes períodos. Embora a pandemia de covid-19 seja uma pauta importante no filme, não é possível afirmar que alguma das pessoas realizou a transição motivada por ela, estando evidente que algumas se mudaram anos antes.
Resumidamente, Onde... representa o êxodo urbano de modo didático; explica o conceito e inclui depoimentos de pessoas ligadas ao assunto, seja por experiência teórica, vivência prática ou aspiração. O narrador auxiliou no fio condutor da narrativa, acrescentando comentários que trouxeram coesão para os diferentes testemunhos. Dentre os fatos narrados, está justamente a relação do aumento da fuga das cidades com a pandemia de covid-19.
O segundo filme analisado, O êxodo..., é um documentário de 20 minutos produzido pela APOEMA Pesquisa como um dos resultados de sua investigação sobre a fuga das metrópoles. O filme apresenta entrevistas com 13 pessoas, incluindo 3 casais. Todas elas vivenciaram o êxodo urbano, algumas, declaradamente, no contexto da pandemia. O enredo recorre a uma narradora cuja participação se restringe ao início e ao fim.
O filme tem início com uma menina brincando em um espaço aberto, com área verde e terra. Aparece inicialmente sozinha e, pouco depois, acompanhada de uma jovem, havendo ainda um cachorro. A voz da narração diz que, ao sair de São Paulo, olha para tudo como se fosse uma poesia, um conto de fadas, como as histórias que a mãe ou a avó contavam. Reforçando a abordagem sobre o mesmo tópico feita em APOEMA (2021), a narradora fala sobre a beleza do desenho de uma criança, com montanha, Sol e casa, enquanto vemos essa imagem sendo ilustrada em uma folha de sulfite e projetada na tela. Contrastando com esse visual, um corte transfere a cena para o cotidiano da zona central de São Paulo, com seus edifícios amontoados, calçadas movimentadas de pedestres e ruas cheias de veículos.
Em meio a uma música instrumental, as vias nos conduzem para a saída da cidade, até que nos deparamos com cenas de uma praia e o título do filme surge na tela. A partir daí, somos apresentados a uma sequência de depoimentos de pessoas que participaram do fenômeno do êxodo urbano, sendo esta a base constitutiva do enredo, à qual se une música, e imagens da zona rural e da praia.
O filme encerra retornando ao ponto onde começou. A criança continua brincando. Ela completou sua ilustração e a descreve apontando os vários elementos: o morro, a borboleta, as nuvens, os pássaros, o arco-íris, a casa. A mesma voz off repete parte do depoimento inicial, quando fala sobre os desenhos feitos pelas crianças serem pura poesia. Segue com novas informações: “Mas aí, você vai vivendo e vai percebendo que tem uma realidade dura como em qualquer outro lugar. Uma realidade dura de sobrevivência, de desenvolvimento, que o mundo atual pede... e da própria existência humana”. O desenho em cores se converte em preto e branco, enquanto o filme termina.
Uma cartela final explica que o documentário faz parte de um estudo maior realizado pela APOEMA Pesquisa, entre outubro de 2020 e fevereiro de 2021, a partir de pessoas que saíram de metrópoles para cidades de pequeno e médio porte. O estudo foi composto por: entrevistas com especialistas (que não participam do documentário); 15 visitas de campo no Sul e Sudeste do Brasil (respeitando as orientações para a prevenção da covid-19); e uma coleta quantitativa, em parceria com a MindMiners, com mais de mil respondentes de todo o país.
As pessoas entrevistadas são todas provenientes de capitais – São Paulo (10) e Porto Alegre (3). Há um predomínio de pessoas que se mudaram para o litoral paulista (6). O distrito de São Francisco Xavier (São José dos Campos, São Paulo) aparece nos dois trabalhos como um destino de entrevistados. Chico Abelha também é duplamente presente: entrevistado como neorrural em Onde..., possui conteúdo de seu canal utilizado em O êxodo... Ambos os documentários recorrem a cenas bucólicas, seja para acompanhar algumas falas ou para atuar na transição de depoimentos.
Há uma diferença quanto à representação da comparação com o urbano: em Onde... é feito um contraste a partir de fragmentos da vida em uma cidade com aparência de médio ou pequeno porte, enquanto em O êxodo... são utilizadas cenas de São Paulo capital. Além disso, O êxodo... também utiliza imagens da praia e menciona a cultura caiçara.
Nos dois filmes os entrevistados aparentam ter mais de 30 anos e dentre eles há casais que moram juntos. Ocorre uma leve diferença de abordagem, pois enquanto em Onde... há uma atenção maior à ocupação, em O êxodo... há um maior foco nas localidades envolvidas no movimento migratório, o que também está manifesto na legenda informativa. O êxodo... trouxe um novo elemento à narrativa ao incluir cenas com criança.
Algumas divergências são encontradas entre os depoimentos, como o caso da criação dos filhos: enquanto alguns preferem educá-los na cidade, pensando em melhores possibilidades de acesso ao ensino, outros desejam proporcionar-lhes o contato com a natureza, como uma importante experiência atribuída à infância. Geralmente é citado o medo da violência encontrado nas grandes cidades, porém, entre os depoimentos também aparece o medo sentido por algumas pessoas nos novos espaços, com o fato de morar só e distante, com a escuridão da noite e F.O.M.O.
Certas observações são constantes entre os depoimentos, por exemplo: o receio quanto a enfrentar emergências relacionadas a acidentes ou problemas de saúde; a menção de melhorias nas condições de saúde; a alteração do contato com quem já conhecia (uma aproximação com o núcleo familiar com o qual reside e um consequente afastamento com os demais familiares e amigos); o estreitamento do contato com os novos conhecidos, aliado à experiência do senso de coletividade; o alívio relacionado ao abandono do medo da violência; o apreço à beleza da natureza; a devoção com que certos participantes utilizam termos como “Mãe Natureza” e “Mãe Terra”, semelhantemente a Boff (2015); a satisfação relacionada ao cultivo de alimentos, e ao contato com as plantas e os animais; a disposição relacionada ao trabalho. Apesar das dificuldades que enfrentam, os depoimentos apontam para a sintonia entre as pessoas e o trabalho, que coincide com seus interesses e personalidades.
Outras reflexões sociais e ecológicas também são levantadas em diferentes graus: percepção de que certos habitantes de localidades pequenas estão mais afastados dos debates acerca de diversidade e inclusão do que os moradores dos grandes centros, sendo pertinente o acesso à educação referente às temáticas sociais, a fim de romperem possíveis preconceitos; chegada de novos moradores que às vezes trazem consigo expectativas irreais ou comportamentos que não se alinham com os valores locais; incômodo com o fato de os citadinos pensarem nos espaços afastados das cidades com um olhar consumista ou explorador, com o intuito de extrair benefícios próprios e usufruir temporariamente, sem uma atitude sustentável; desaprovação diante do olhar de superioridade ou a relação de subserviência que certos citadinos demandam dos habitantes locais; crítica à gentrificação e a outras mudanças na dinâmica cultural da região, onde características locais passam a ser negligenciadas em favor de uma estética turística ou de consumo.
Como manifesto, o descomprometimento presente nas atitudes de alguns dos novos residentes mencionados pode afetar negativamente as comunidades locais e sua cultura, além de prejudicar a integração entre os recém-chegados e os habitantes naturais.
4.2 Decisão de mudança
O narrador de Onde... afirma que, apesar da esperança que foi depositada nas cidades, elas “não trouxeram somente benefícios para a vida das pessoas”, mas também adversidades. Aponta essas adversidades e a busca por uma melhor condição de vida como uma razão de destaque para o êxodo urbano. Assume que em certos casos, a pandemia serviu como catalisador para essa mudança, coincidindo com as citações de APOEMA (2021), Arrais (2021), Pretto (2021) e com o diagnóstico de Santana (2020) e Sutto (2020). Os seguintes itens cumprem a função de motivadores para a migração dos entrevistados:
- Busca por qualidade de vida e paz mental: muitos mencionam a busca por um ambiente mais tranquilo e próximo da natureza como principal motivação, seja para ganho pessoal ou para a criação dos filhos. Sentem-se mais realizados em meio ao ambiente natural, o que contribui para sua paz mental e bem-estar emocional;
- Escape do estresse e de condições desfavoráveis da metrópole: estresse urbano, poluição, violência, trânsito desgastante, confinamento (pela sensação habitual da falta de espaço, por se esconderem da violência ou por razões da quarentena) e custo de vida elevado são fatores que levaram muitos deles a buscar um ritmo de vida mais lento e satisfatório, em um local onde podem circular livremente;
- Conexão com a natureza e estilo de vida sustentável: é comum a menção ao desejo de viver em harmonia com a natureza, adotando práticas mais sustentáveis de produção de alimentos e consumo consciente;
- Busca por autossuficiência e independência: a autonomia e a capacidade de atender às próprias necessidades são fatores motivacionais para alguns dos novos rurais que valorizam a habilidade de produzir seus próprios alimentos;
- Emergência sanitária: evitar aglomerações e risco de contágio; possibilidade de um isolamento social com maior liberdade e contato com a natureza; oportunidade de obter alimentos frescos e reduzir a dependência do supermercado.
Nota-se, entre os relatos apresentados, as motivações para o neorruralismo descritas por Méndez Sastoque (2013) (comparativa, ético-política, econômico-produtiva e “expulsão”), bem como a insatisfação pelas metrópoles descrita por APOEMA (2021), Gomes (2022), Pretto (2021), Augusto (2022) 2m11ss, incluindo as emoções despertadas pela pandemia.
Quanto à presença de obstáculos que atrapalharam a decisão ou atrasaram a concretização da mudança, são representadas menções a:
- Acesso limitado a serviços essenciais: distância e dificuldade de acesso a serviços públicos essenciais, como saúde e educação;
- Dificuldade de deslocamento: ausência ou ineficiência de transporte público, características do trajeto e falta de veículo particular;
- Isolamento social e distância de entes queridos: um desafio emocional (especialmente quando há muito apego ou existe a consciência de que passará a viver sozinha), ou logístico (nos casos em que alguém na cidade depende dessa pessoa);
- Sensação de partir para o desconhecido: não possuir experiência prévia e não ter muita ideia do que esperar;
- Desafios econômicos e de sustento: conseguir renda sustentável por meio de um trabalho adaptado ou da chegada da aposentadoria;
- Apego ao modo de vida urbano: dificuldade de abandonar o padrão de vida urbano; não possuir um interesse legítimo de transformar os hábitos de consumo e lazer.
Dentre as menções aos obstáculos para a tomada da decisão de mudar presentes na literatura, é possível encontrar a discussão acerca das limitações impostas pelo poder de renda (APOEMA, 2021; Pretto, 2021). São mencionados como limitadores a impossibilidade de comprar ou alugar um imóvel, trabalhar afastado da cidade, bem como não ter estrutura/rede de apoio, o que sugeriria solidão. Nos documentários, os entrevistados não mencionam terem realizado a mudança acompanhados de uma rede de migrantes, com isso, em alguns casos, encontram o apoio nos vizinhos do local, em outros, encaram o fato de estarem sós. Referente à saúde, o receio da dificuldade de atendimento como empecilho para a mudança contrapõe-se ao êxodo motivado pelo medo de contaminação por covid-19, evidenciando a presença da pauta sanitária entre as preocupações e os objetivos.
Como indica APOEMA (2021), a execução do êxodo urbano frequentemente carece de algum gatilho para ser colocado em prática, dos quais destacou, para o período, a ampliação da possibilidade de trabalhar em casa, ocorrida com a chegada da pandemia. Por meio de depoimentos coletados nos documentários, é possível verificar a constante referência ao passo inicial da mudança, uma vez que compreende uma decisão de elevado impacto sobre a rotina previamente construída, exigindo reflexão, planejamento e disponibilidade.
É reiterado nos filmes que a pandemia constituiu o impulso que muitas pessoas precisavam para a realização do êxodo urbano, por alterar a visão e a relação com o mundo, o que se refletiu na moradia. De todo modo, ela surge em uma sociedade que já possuíam problemas urbanos e atinge pessoas que já ansiavam por mudanças. Assim, quanto aos facilitadores para a tomada de decisão e execução do plano de mudança:
- Possibilidade de trabalho remoto: a ascensão do trabalho remoto durante a pandemia de covid-19 facilitou a saída das cidades, permitindo que mantivessem seus empregos enquanto desfrutavam de um ambiente mais tranquilo;
- Possibilidade de trabalho ligado à nova localidade ou possibilidade de renda independentemente dela: aqui estão incluídos aposentados, pessoas que trabalham com o turismo, criadores de conteúdo, agricultores, dentre outros;
- Realização pessoal e adaptação ao novo estilo de vida: já ter morado na zona rural, na praia ou em localidades pequenas; histórico de contato frequente com a natureza ao longo da vida, sobretudo na infância; experiências prévias com migrações; percepção da capacidade de adaptação rápida e de encontrar realização pessoal;
- Não ter compromisso na cidade, a exemplo de um trabalho remunerado ou outra responsabilidade, como cuidar de um familiar;
- Aceitação e participação familiar: sintonia de interesse entre as pessoas que se relacionam, ilustrado na quantidade de casais que realizam a mudança juntos;
- Tecnologias: a possibilidade atual de contar com eletricidade, internet, eletrodomésticos e transporte eficiente, contribuindo para o conforto, a segurança e o contato social.
Como dito por Pretto (2021), as expectativas quanto a onde morar são uma realidade entre os migrantes. A decisão de mudança não se trata apenas de optar por outra localização geográfica, mas de viabilizar um planejamento. Diz respeito sobretudo a uma escolha consciente de um ambiente que promova o bem-estar físico e emocional, oferecendo a oportunidade de contato com a natureza e aprendizado, longe das limitações e do ritmo frenético das grandes cidades.
As características relatadas evidenciam as complexidades envolvidas na decisão de migrar para áreas afastadas das cidades, incluindo motivações variadas, desafios significativos e fatores de diferentes naturezas que facilitam essa transição.
4.3 Adaptação
Analisando os depoimentos na esfera da adaptação pessoal à nova forma de vida, destacam-se três principais aspectos: desafios/dificuldades pessoais de adaptação, ganhos/benefícios pessoais observados com a mudança, e senso de pertencimento ao novo território. Observa-se que aqui são concretizados os aspectos já esperados quando da decisão de mudança. Vamos explorar cada um desses pontos.
No que diz respeito aos desafios individuais de adaptação:
- Acesso a serviços públicos: a consciência do difícil acesso a serviços de emergência, como atendimento em caso de acidentes graves, influencia as atividades diárias e exige cautela extra;
- Isolamento social: distância dos serviços públicos e dificuldade em visitar entes queridos, o que se torna mais acentuado durante a pandemia, afeta as relações sociais e emocionais; dificuldade de abandonar a mentalidade da cidade, o ritmo urbano movimentado, e realizar a transição para um estilo de vida mais calmo e silencioso;
- Trabalho e oportunidades profissionais: limitações nas oportunidades de carreira e educação para os filhos, o que pode exigir esforço e adaptação.
Como relatado pelo narrador de Onde... “assim como a cidade, o campo também tem suas desvantagens, e é necessário balancear os prós e os contras para evitar uma romantização do ambiente rural; viver no campo exige trabalho duro e cuidados”. Apesar disso, os participantes de Onde... são unânimes ao declarar que não se arrependem da escolha que fizeram de se mudar para o campo. A mesma pergunta não foi feita em O êxodo..., porém seus participantes também contribuíram com relatos que nos ajudam a perceber os benefícios adquiridos com a mudança. Quanto aos ganhos pessoais observados nos dois filmes:
- Qualidade de vida e bem-estar: paz mental e sensação de realização; conexão espiritual com a natureza, vendo-a como uma fonte de equilíbrio e tranquilidade que não era encontrada na cidade;
- Sustentabilidade e redução do consumismo: distanciamento do padrão consumista urbano e aproximação da produção local e sustentável, o que acarreta um estilo de vida mais responsável;
- Libertação do estresse urbano: alcance de uma vida mais tranquila e equilibrada, o que propicia uma melhora significativa na saúde mental e permite a dedicação a atividades que trazem satisfação pessoal;
- Benefícios físicos: melhora na respiração; cura de dor de cabeça; condições favoráveis para a prática de lazer e atividades físicas; maior disposição para encarar o dia; menos propensão a doenças;
- Suporte local: passar a possuir o apoio de vizinhos e comunidade;
- Sensação de pertencimento, em contraste com a hostilidade da cidade.
As fases internas da adaptação de quem realiza o êxodo urbano descritas por APOEMA (2021) podem ser identificadas nos filmes, sendo perceptível que ocorrem variações no esforço demandado em cada uma, para cada indivíduo, por exemplo: casos de não adaptação devido à força dos hábitos de consumo carregados. Paralelamente ao receio em torno às dificuldades de acesso aos serviços de saúde como empecilho para a migração, os benefícios para a saúde despontam entre as vantagens encontradas nos novos espaços, um fator apontado em Gomes (2022) como motivador do neorruralismo.
É possível extrair dos relatos que a mudança para ambientes mais próximos da natureza exigiu adaptação por parte dos migrantes, porém, superadas possíveis dificuldades, trouxe benefícios para os participantes em termos de saúde e qualidade de vida. A transição envolve uma jornada de autoconhecimento e coragem para buscar uma vida mais satisfatória, independentemente das expectativas ou pressões externas.
Por fim, discorreremos sobre o senso de pertencimento ao novo território. Trata-se de um sentimento importante na adaptação da pessoa migrante, pois, como indica Pretto (2021), o sentimento de pertença traz motivação. Destacam-se, nos documentários:
- Identificação cultural e social: adoção de práticas e valores locais, como o respeito pela natureza e a vida comunitária, que são distintos dos encontrados na cidade;
- Consciência ambiental e conexão com a natureza: perceber-se parte da natureza e estar com ela conectado; valorizar um estilo de vida sustentável; promover uma relação mais consciente e respeitosa com o meio ambiente;
- Aceitação e integração na comunidade: interesse/preocupação com o outro, o que inclui a dedicação de tempo; oferecer e receber auxílio, como no acesso a produtos e serviços. A interação com a comunidade gera uma sensação de proximidade, afastando o isolamento sentido na cidade.
No contexto dos documentários analisados, os participantes contrastam a alienação urbana com a vida no campo, onde, no convívio harmônico com a natureza e os vizinhos, encontram uma possibilidade de vida com maior liberdade, bem-estar e uma sensação de pertencimento mais profunda. Longe das grandes cidades, sentem-se mais propensos a encontrar o equilíbrio entre corpo, mente e ambiente natural.
Além das recompensas, os entrevistados destacam os desafios do êxodo, e refletem complexidades encontradas na busca pelo projeto de vida almejado. Os relatos apontam para diferentes faces da adaptação, considerando a mudança do ritmo de vida e das necessidades.
As narrativas remetem à importância de que a atuação humana sobre o meio tenha em vista os impactos sociais e ecológicos. Os entrevistados localizam suas ações em um contexto que envolve a natureza e a cultura local, fato que se relaciona à biorregião e às abordagens do biorregionalismo presentes no referencial teórico (Boff, 2015; Borsatto et al., 2006; Vianna, 2022, 1h43m14s), ainda que o conceito não seja nominado nos filmes.
4.4 Impactos biorregionais
O processo social de adaptação explicado por APOEMA (2021) – que pode incluir choque cultural, inserção e superioridade – indica que integrar-se a uma nova cultura demanda tempo, abertura e, simultaneamente, reflete o potencial impacto dos novos migrantes sobre o ambiente e a cultura locais. Em outras palavras, não apenas os novos migrantes são influenciados pela mudança, mas também exercem influência em diferentes níveis.
A migração para áreas rurais frequentemente implica mudanças no uso da terra e na infraestrutura local, apresentando desafios como a demanda por mais infraestrutura e serviços básicos. Os novos residentes retratados nos documentários buscam estilos de vida mais sustentáveis, o que pode ter um impacto positivo na conservação ambiental, porém, como revelam nos depoimentos, nem todos os imigrantes adotam esses princípios.
Os depoimentos destacam variados impactos nos ambientes locais devido aos novos fluxos humanos. A estrutura das localidades nem sempre está preparada para o aumento populacional, resultando em mudanças no uso do solo que nem sempre seguem práticas sustentáveis. Além disso, há uma nova demanda por recursos e serviços que pode ser exacerbada pelo desejo de alguns recém-chegados de manter padrões de consumo urbanos.
Essa situação é exemplificada pela formação de novos aglomerados urbanos que necessitam de infraestrutura básica para evitar a degradação ambiental, muitas vezes ignorada. Problemas ambientais semelhantes são descritos por Pretto (2021), relacionados à falta de consciência ecológica e coletiva. Esses exemplos nos documentários ressaltam a falta de respeito pelo meio ambiente e a não consideração deste como parte essencial da vida.
Como relatado em alguns depoimentos, as áreas afastadas das grandes cidades não devem ser vistas apenas como destinos de lazer ou consumo. Embora os novos moradores tenham interesses próprios, suas necessidades individuais não podem sobrepor-se ao ambiente local. Em sintonia com Boff (2015) e sua compreensão da singularidade de cada ecossistema, os documentários enfatizam a necessidade de considerar esses locais como ecossistemas próprios que merecem respeito e cuidado, não sendo apenas recursos a serem explorados.
Os depoimentos nos fazem refletir sobre a necessidade de uma mudança de perspectiva que leve a uma maior compreensão da interdependência entre os elementos naturais e a presença humana. Evidencia-se a busca por um estilo de vida mais consciente e o reconhecimento do impacto de nossas escolhas no mundo ao nosso redor.
A importância do ordenamento territorial, conforme destacado por Van Assche et al. (2013), é evidente nos documentários, que discutem a formação de novas áreas habitacionais e as necessidades decorrentes das mudanças demográficas. A preocupação com o impacto humano no meio ambiente, o reconhecimento da singularidade regional e a necessidade de cuidados com as relações humanas são temas recorrentes.
A chegada de novos habitantes pode trazer influências culturais diversas. Eles podem interagir positivamente com as culturas locais, como demonstram relatos pessoais que mencionam contribuições para a economia local, trocas de experiências e adaptação a novas atividades agrícolas e artesanais. No entanto, essas influências culturais nem sempre são harmoniosas com os modos de vida tradicionais, resultando em conflitos culturais nocivos.
A análise dos depoimentos revela um conflito entre os valores e tradições locais e a influência dos novos moradores que, muitas vezes, tentam modificar o ambiente conforme suas próprias preferências, sem compreender totalmente a cultura e a história locais. Isso é exemplificado pelo caso de um idoso residente tradicional, rico em cultura local, que enfrenta dificuldades para manter suas práticas cotidianas (como entrar na sede do distrito a cavalo), frente às novas expectativas de turistas e moradores recentes.
Dessa forma, as práticas e valores introduzidos pelos novos residentes podem gradualmente modificar a cultura local, inclusive resultando em processos de gentrificação. Isso contradiz a importância destacada por Boff (2015) da não uniformização dos costumes, prejudicando a biorregião. Certos entrevistados alertam para a possibilidade de que a identidade local seja erodida em prol de interesses comerciais ou individuais.
A migração urbano-rural no Brasil, assim como o movimento em direção a cidades menores, reflete uma busca por qualidade de vida, conexão com a natureza e sustentabilidade. Entretanto, traz desafios significativos relacionados à infraestrutura, mudanças culturais e conflitos de interesses entre novos e antigos moradores. Certos interesses dos novos residentes ameaçam a cultura local e o meio ambiente. Encontrar um equilíbrio entre preservação ambiental, integração cultural e atendimento às necessidades locais emerge como um desafio fundamental para comunidades em transição.
5. CONCLUSÕES
Embora o êxodo rural seja uma tendência histórica, a pandemia evidencia a desmetropolização, já em curso, mas agora com novos estímulos e possibilidades. Esses temas são explorados no referencial teórico e refletidos nos filmes analisados. Apesar de não nomearem termos como biorregionalismo e ordenamento territorial, os filmes introduzem discussões sobre a importância do planejamento ambiental e da interação adequada entre novos rurais e ambiente, que são similares aos debates em torno dos conceitos.
A análise dos filmes complementa o referencial teórico ao reforçar os tópicos estudados, exemplificar vivências pessoais e levantar novas questões. Os filmes destacam a migração das metrópoles para áreas menores sob a ótica de melhorias para os migrantes, mas também considerando o impacto no ambiente local. Assim, as preocupações nos documentários ecoam os debates da literatura.
Os entrevistados nos filmes expressam apreço pelo equilíbrio com o meio ambiente, valorizando uma qualidade de vida que transcende o materialismo e se baseia na conexão com o ambiente natural e em atividades que trazem realização pessoal e paz. Comprometem-se com um estilo de vida sustentável e autêntico, oposto ao consumo excessivo visto como prejudicial ao indivíduo e ao planeta.
Além do medo de contágio durante a pandemia, os depoimentos nos filmes revelam um sentimento de afastamento ou desconexão dos ambientes urbanos modernos. Fatores como o ritmo acelerado, o trânsito intenso, o alto custo de vida, a falta de contato com a natureza, a superficialidade das relações sociais, a poluição e o estresse constante são mencionados como motivadores para buscar alternativas mais satisfatórias.
Os testemunhos não se limitam às experiências individuais, mas abordam preocupações comuns com a população e o planeta. A partir dos pontos levantados nos documentários, podemos refletir sobre as demandas distintas entre rural e urbano em diferentes contextos. Não buscamos estabelecer um dualismo entre campo e cidade nem romantizar a vida no interior, contudo, este estudo suscita reflexões sobre questões socioambientais e pessoais exacerbadas nos grandes centros urbanos, cujo crescimento insustentável se torna inviável.
Sem medidas adequadas de planejamento e infraestrutura, as transformações nos destinos rurais ou litorâneos podem levar à precarização ambiental. Os filmes e o referencial teórico abordam as particularidades ambientais e o impacto potencial da atividade humana, inspirando reflexão e ação na gestão dos espaços. A análise do material ressalta a importância do ordenamento territorial e do conceito de biorregião.
A biorregião ultrapassa as características físicas do território, considerando fatores políticos, econômicos, culturais e valores humanos como respeito e solidariedade. O ordenamento territorial deve considerar a biorregião, sendo sensível às características locais e às tendências transformadoras dos novos fluxos humanos. Políticas de ordenamento territorial, regional ou estadual, são essenciais para integrar retorno ao campo e imigração litorânea às oportunidades de vida, incluindo produção e trabalho produtivo em áreas não urbanas. Devem favorecer a atuação dos novos habitantes e fortalecer os vínculos com a biorregião, promovendo pertencimento, satisfação e bem-estar, incluindo a população prévia.
Na transição para o meio rural, é crucial respeitar os modos de vida locais para que não ocorra a imposição cultural urbana. O biorregionalismo enfatiza a harmonia entre seres humanos, ecossistemas e comunidades humanas, defendendo a regeneração ambiental e coletiva. A preocupação biorregional com os novos rurais vai além dos benefícios econômicos, abraçando uma contribuição ambiental e social horizontal e mutualista.
Este estudo procura motivar novos debates, considerando aspectos teóricos e práticos. O êxodo urbano oferece uma oportunidade para repensar os modos de vida contemporâneos em busca de estratégias mais justas, generosas e socialmente saudáveis. A interação humana com o meio ambiente deve ser ponderada quanto aos potenciais danos e benefícios. Políticas de ordenamento devem contemplar todos os públicos, garantindo que o contato com a natureza não se restrinja às elites urbanas.
Resumo
Main Text
EXTENDED ABSTRACT
1. INTRODUÇÃO
2. REFERENCIAL TEÓRICO
2.1 O desgaste das metrópoles
2.2 Perspectivas territoriais
2.3 Fuga das metrópoles na pandemia
3. METODOLOGIA
4. RESULTADOS E DISCUSSÃO
4.1 Características das produções
4.2 Decisão de mudança
4.3 Adaptação
4.4 Impactos biorregionais
5. CONCLUSÕES